Imagine que em uma determinada hora do dia você se disponha a levar uma tigela de ração para um ponto da rua. Este hábito começa a ser cultivado e repetido, desta forma em um primeiro momento algum gato descobre esta possibilidade e espera encontrar comida. Após alguns dias você percebe que tem mais um gato aparecendo para se alimentar, e assim suscetivamente. Como uma pessoa bondosa, você resolve comprar mais ração para os outros felinos que foram surgindo, contudo isso vai virando uma bola de neve, e em um determinado momento seus recursos vão ficando escassos, mas os gatos seguem esperando de você a refeição dos mesmos, e te cobram com miados escandalosos aquilo que a princípio era simplesmente um ato de bondade.
Pois bem, esta breve ilustração abre um tema que tem sido de importância multicultural, entre todas as idades, e nas suas diversas apresentações, que são os relacionamentos disfuncionais que tanto têm afetado nossa sociedade contemporânea.
Os relacionamentos abusivos possuem sua gênese em uma situação onde alguém está doando o máximo que tem a oferecer, e de um outro lado em contrapartida há alguém cobrando mais e mais e se irando quando não recebe.
Se analisarmos de maneira adequada a mente humana, todos possuímos nossos gostos, os assuntos que achamos mais interessantes, os nossos sonhos, e a forma como nos sentimos confortáveis diante de cada situação; contudo, a arte de ir vivendo e crescendo, é que nos dá a habilidade de nos moldarmos diante de cada situação, e a trabalharmos nossa flexibilidade cognitiva, que nos proporciona a capacidade de entendermos que a despeito de todos os nossos gostos e idealizações, dentro de um determinado contexto, especificamente no relacionamento com as outras pessoas, nós deveremos respeitar as individualidades do outro, e chegarmos a um senso comum.
Desta forma descrita acima, nós conseguimos entender quando algo não é exatamente como esperamos, e quando o nosso controle não é possível, aceitando as possíveis baixas, e reestruturando nossa abordagem frente as diversas situações, porém dado a própria personalidade, temperamento, criação e alguns outros fatores, diversas pessoas criam um senso de urgência diante suas demandas, e imergidas em um latente egocentrismo, não são capazes de receberem não, ou de aceitar formas diferentes de se pensar e agir, e principalmente não são dotas de um senso empático comum que deveria nortear as ações.
Dentro deste contexto chegamos em uma situação que tem devastado a sociedade de uma forma clamorosa, que são aqueles relacionamentos em que há claramente uma infelicidade velada por uma das partes, sem que a outra enxergue ou se importe.
Para entendermos melhor a cronologia dos eventos, devemos primariamente pincelar sobre as personalidades que de maneira geral existem. Existem pessoas que naturalmente são mais observadoras, escutam mais, costumam evitar conflitos, não gostam de desagradar, e expõem menos suas opiniões de forma a acreditarem que nem sempre devem ser ouvidas. Já por outro lado, temos pessoas que gostam de se expressar, impor suas ideias, possuem uma necessidade de serem compreendidas, e têm uma dificuldade de aceitar opiniões contrárias, gostando do embate.
Certamente você já deve ter imaginado pessoas que você conhece dentro destes perfis, pois bem, desta forma já conseguimos ver de uma maneira natural, que existe um pareamento de pessoas que pode ser um pouco disfuncional. Na prática como dito anteriormente a cronologia de um relacionamento cronicamente abusivo, começa com o envolvimento de uma pessoa com uma personalidade um pouco mais incisiva e dominante, com alguém que possui uma tendência um mais emotiva e diminuta. Em um primeiro momento, para o funcionamento de qualquer relacionamento interpessoal, as palavras boas reinam, as gentilezas e as ideias correspondentes, muitas vezes formatadas para coincidirem. Neste cenário, pode ser difícil ver algo deletério presente. Então com o passar do tempo se iniciam as críticas veladas, que começam a realizar uma desconstrução na estima de quem já naturalmente tende a achar que pode estar errado. Dentro deste cenário, os que gostam de conflito criam um clima de instabilidade, mas aqueles com a estima já combalida, tendem a se diminuir mais e buscar se esforçar mais para evitar estes ditos conflitos. Posteriormente, a gravidade aumenta, seja com agressões físicas, ou agressões verbais proeminentes que machucam profundamente, mas em alguém que já está com a estima aos frangalhos, só consegue imaginar que realmente é aquele fracasso de pessoa, e que não é bom o suficiente.
Perceba, como falamos no início, quanto mais a pessoa vai se doando, maior se tornam as demandas e mais ingrata se torna as tarefas que são criticadas. Note, não estou dizendo que não devemos nos doar em relacionamentos, seja de qual natureza for, contudo, toda relação é uma troca, onde temos duas partes oferecendo algo, em prol de um objetivo, da funcionalidade. Quando em um determinado momento claramente um lado esta em elação, e outro em sofrimento, nós possuímos a apresentação de muitos relacionamentos hoje em dia, absolutamente disfuncionais.
Pessoas que não conseguem se valorizar por anos de menos-valia, se tornam incapazes de denunciar, ou se libertar e vivem em prisões emocionais diárias e contínuas, muitas vezes expressadas em toda sua intensidade apenas no consultório, enquanto por outro lado, pessoas com graus diversos de egocentrismo e imposição, fazem mal a muitas pessoas ao redor, de forma às vezes até mesmo involuntária, por não saberem lidar com suas frustrações ou possuir a empatia necessária para entender o outro.
Um ponto importante neste contexto é justamente as pílulas de atenção ou elogios que em diversos casos se encontram entremeadas na parte abusiva, que faz com que a pessoa acabe se cingindo de esperança de mudanças, que se não estiverem embasadas em uma modificação de comportamento e pensamento, na maioria dos casos se torna frustra, e mais uma forma de controle emocional, promovendo uma manutenção da prisão vigente, trazendo um clima tetricamente instável na realidade cotidiana de alguém que se encontra com um importante prejuízo na estima. Este sequestro emocional é presente de uma forma assoladora, e alimenta as incertezas, dúvidas e confusão em relação ao próprio eu, e a realidade do relacionamento.
Portanto, quando olhamos no âmago das questões, existe uma importante necessidade de reconstrução de ideias e recondicionamento de pensamentos. Levando em consideração a forma de agir e de expressar no contexto social, uma boa terapia certamente traz libertação, com organização de ideias, além de contribuir de forma mais contundente que uma medicação que muitas pessoas acabam tomando para suavizar as realidades cruéis.
Relacionamentos abusivos não possuem classe social, não possuem cultura, não possuem momento, não possuem ambiente; eles simplesmente podem estar presentes em qualquer lugar, se transformando em uma tarefa, um dever de toda a sociedade contribuir para o combate e auxílio a todas as partes envolvidas. Desta forma se você conhece alguém passando por essas dificuldades, o lembre da importância de uma terapia, se você puder escutar, escute, e lembre-se de ter carinho porque quem está com a mente fragilizada, não terá o mesmo grau de discernimento para tomar decisões, ou enxergar o todo que está inserido, sendo essencial a recuperação do status basal da psiquê para seguir em frente e se recuperar.
Ninguém é capaz de ser feliz preso em sua própria existência, quando a infelicidade está morando junto e acompanhando todos os dias. Instrua, ajude, se importe, busque ajuda se for o seu caso, dialogue com o outro, entenda suas emoções, não deixe as "rações diárias" serem em vão, e vamos juntos buscar uma sociedade com menos sofrimento mental. O nosso mundo é feito por cada um de nós.
G.H.G.O
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